"Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:

'Trouxeste a chave?'"

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 12 de junho de 2018

Poema Inquieto

Quando nasci, um anjo maroto,
desses que vivem à toa disse: "Vai"
mas não me disse pra onde,
e por isso ando por aí,
de porto a porto,
à procura de um eu
que não sei onde se esconde...

Tantos caminhos já trilhei:
da minha dor e angústia, só eu sei.
E da ordem do anjo maroto
me veio essa sina de não sossegar.
Vivo ora aqui, ora acolá...
Sou inconstante, mutante,
e minha dor é variável,
assim como meu amor.
Meus pés me levam
para onde a estada for...

Ah, anjo maroto que me batizou!
Pois se um dia eu me cansar
de ser inquietude,
vou ser gauche na vida...
Ah, se vou!

sábado, 2 de junho de 2018

Do Sangue (Soneto do Coração)

Como seiva que corre e nutre a vida,
como rio que entoa cantilenas,
sou o fluxo vital, e que convida
a amar, e a sofrer mais duras penas.

Como o mel que adoça e sustenta,
como o sêmen, que nutre a criação
minha essência viscosa te alimenta,
te invade, te transborda o coração.

Sou líquido que corre em tuas veias,
minha essência é rubra e visceral.
Sou o pulso vital que te incendeia.

Eu sou o teu instinto animal,
tua carne, teu desejo sem cadeias:
Eu sou o teu pecado original!



Da Terra (Soneto da Criação)

Sou o início da vida, mãe primeva,
é meu seio que a tudo alimenta:
Sou Gaia, sou Deméter, Ísis, Eva,
sou útero que nutre e que sustenta.

De minha carne tiras pão da vida
que sustenta tua força viril.
E em troca da fartura oferecida
recebo fome e ganância vil.

Tua cobiça é vírus, e se espalha,
produzindo miséria, praga e guerra,
e eu, que ora fui berço, sou mortalha

pois quando a tua vida se encerra
os teus ossos cansados da batalha
adormecem no seio da mãe-terra.